sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Os "Jograis da Fonte Lourenço"

"Jograis da Fonte Lourenço"
José Castanheira, Acácio Simões e Chico Gouveia

Houve um tempo, na minha juventude, em que a arte de poetizar em grupo - os “JOGRAIS”- estava na moda. Tinha especial apreço pelos "Jograis de S. Paulo" e, de memória, lembro O Dia da Criação, de Vinicius de Morais, “porque hoje é sábado …”.
Nesse tempo, alinhavei textos, satíricos ou não, inspirados em estórias do dia-a-dia, do domínio público, juntava três ou quatro amigos e acontecia o entretenimento…
Foi com esse espírito que, anos mais tarde, no Barril de Alva, nasceu o grupo  “Jograis da Fonte Lourenço”, composto pelo Acácio Simões, Chico Gouveia e José Castanheira. Depois de um sarau inolvidável, que teve lugar no  salão da Associação Filarmónica Barrilense, o grupo terminou...
Por mero acaso, nos meus arquivos, encontrei uma fotografia dos "atores" e os textos originais -“relatos poetizados”   de  situações reais, que se transcrevem.
-
CR
*  

ESTÓRIAS DE ENCANTAR


T.- UMA ESTÓRIA DE ENCANTAR…(pausa rápida)
1.- NO DIA A DIA DO NOSSO BARRIL /ACONTECEM COISAS MIL…
2.- ALIÁS – ACONTECEM COISAS MIL
T.- NO NOSSO BARRIL
3.- UM DIA…
1.- …ERA VERÃO…
2.- …ESTAVA MUITO CALOR
T.- (bombo) PUM!
T.- EIS SENÃO QUANDO…TUDO ACONTECE NUM TURBILHÃO!
1.- UMA PEDRA?
2.- UM PENEDO?
3.- AI QUE MEDO!!!
T.- (bombo) PUM!
T.- FOI-SE A LIMPEZA DO COLAÇO…
... FICOU TUDO EM DESALINHO
…UM GRANDE ESTARDALHAÇO!

2.- UM DESATINO…
1.- PASSOU POR ALI UM BEZOURO
T.- ZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZ…
T.- E DA PEDRA SE FEZ PEDRINHAS
3.- AI SE AQUILO FOSSE UM TESOURO…
T.- IA TUDO P’RAS ALMINHAS!
(pausa ligeira)
1.- UMA VEZ…
2.- NO NOSSO BARRIL…
3.- PASSOU-SE UMA ESTÓRIA DE ÁGUA CORRENTE
1.- CONTA, CONTA À GENTE!
T.- UM PACATO CIDADÃO
T.- FEZ UM XIXI NO CHÃO,
T.- COM DECORO, É DE VER
T.- NÃO FOSSE ALGUÉM ENTENDER

T.- QUE MIJAR É PROVOCAÇÃO!
2.- …É APENAS UM CHORO…
3.- UM XIXI FAZ QUALQUER MORTAL
1.- …É NORMAL…
2.- (apito - PRRRRIIIIIIIIIII…)
3 .- É A POLÍCIA!
2.- OLHA À POLÍCIA!
T.- …QUE SINISTRO… QUE SINISTRO…
3.- SENHOR MINISTRO: QUANDO CHEGA A REGEDOR?
1.- O SENHOR É GENTE FINA
2.- E PESSOA DE MUITO VALOR!
T.- CALMA, MUITA CALMINHA, SE FAZ FAVOR
T.- QUE A GENTE SAIBA,
T.- FAZER XIXI NÃO É PECADO,
T.- NÃO SE PODE SER MULTADO!

1.- NEM PRESO!
2.- NEM PRESO!
3.- NEM PRESO!
T.- (bombo) PUM!
1.- (virado para 2 e 3) ISTO É POLÍTICA!
2.- ISTO É POLÍTICA!
3.- ISTO É POLÍTICA!
T.- ISTO É POLITICA!
T.- (bombo) PUM!


COISAS PRÓPRIAS DO ENTRUDO, BOAS EM QUALQUER OCASIÃO

T. -ALGUMAS SENHORAS DA NOSSA TERRA
      ESCAMDALIZAM-SE COM UM SIMPLES BEIJO!
     AI QUEM ME DERA… AI QUEM ME DERA
     VÊ-LAS NO MESMO CORTEJO…
     DO DESEJO!
1.- QUANDO ERAM NOVAS, MOÇAS E BELAS
2.- (gesto de pala na testa) ONDE ESTÃO ELAS, ONDE ESTÃO ELAS?
3.- NAMORAVAM PELOS PINHAIS
T.- AOS AIS…AOS AIS… AOS AIS
3.- UM FILHO FORA DE TEMPO / ERA O ECO DE UM LAMENTO:
T- POR NÃO TER TROCADO O GOSTO DO DESEJO
T.- PELA CARÍCIA DE UM BEIJO.

1.- CRITICAM OS MAIS NOVOS /QUE DA VIDA NADA SABEM
2.- GALINHAS CHOCAS SEM OVOS
T.- GALIFÕES, MARIALVAS… QUE CAVEM.. QUE CAVEM..
3.- TRABALHO DURO, TRABALHO DURO !
1.- E NÃO FAÇAM BARULHO
2.- NADA DE MOTOS E LAMBRETAS
T.- MAIS MARRETAS, MAIS MARRETAS
T.- QUE CAVEM… QUE CAVEM

(pausa curta)
T.- SE APRENDER NÃO É OFÍCIO
DEIXEM-ME FICAR COM O VÍCIO
DE SER BURRO A VIDA INTEIRA
(CADA UM É BURRO À SUA MANEIRA)
OU DOUTOR NO SEU SABER:
- VAMOS TODOS APRENDER
E DIZER POR FIM:
“OS BARRILENSES SÃO ASSIM”
!

GAZETILHA DE “PÉ QUEBRADO”

T.- LEVEI A MINHA GAROTA
      UM DIA AO URTIGAL…
… FUI PASSEAR AO URTIGAL.
     E AQUELA GRANDE MAROTA
     QUIS FAZER UM PIQUENIQUE
     DE FIGOS SECOS COM AMORAS
     E ÁGUA DO ALAMBIQUE…
1.- APANHOU TAL BORRACHEIRA..
T.- QUE PERDEU O TINO E AS HORAS
2.- TAL ERA A BEBEDEIRA...
T.- FOI UMA BELA BRINCADEIRA, FOI UMA BELA BRINCADEIRA
1.- (pausa - virado para 2) AGORAS CASAS COM ELA!
(saem os três a abraçados  a gargalhar)



terça-feira, 2 de agosto de 2022

A importância de se chamar Dulcineia




Do  meu sítio vejo os novos moinhos de vento implantados na Serra do Açor. A bem do progresso e da economia, a paisagem está, em definitivo, alterada; o horizonte, se o céu não estiver escondido pelas nuvens, ficou estranho para quem entende pouco ou nada de energias renovadas.
Para sempre, desaparecem os moinhos que moíam os grãos. Os atuais aerogeradores são gigantes com uma “cabeça” a piscar de vermelho na noite; de dia descobrem-se as “velas” num movimento constante e pouco apressado, com a finalidade de converter a energia eólica em energia elétrica. Parte dela fará mover sofisticadas engrenagens com funções semelhantes às dos antigos moinhos dos moleiros, imagens ilustres da obra de Miguel de Cervantes, D. Quixote de la Mancha.
O autor narra, entre outras aventuras, a luta de D. Quixote contra os moinhos de vento que o próprio confunde com gigantes.
Se Miguel de Cervantes existisse neste tempo de modernidades, a ponto de viajarmos a outros planetas, certamente teria dado outro sentido à sua imortal obra e era bem capaz de inventar outro personagem, talvez com a “mesma triste figura” do seu cavaleiro andante, mas por outras causas…
Imagino a “minha serra” do Açor como mote para estória novelesca, desvendando segredos, como os que estão associados à aldeia histórica do Piódão.
É por aqui que me fecho num silêncio absurdo sobre a paisagem, quase “morta” de gentes e animais – nem um corvacho a sondar do alto a ração do dia, muito menos um “moleiro”, se é que os houve por lá noutros tempos.
Conduzo devagar, a seguir a uma curva, descubro a aldeia, faço uma pausa na viagem e contemplo a realidade de um sítio de total encantamento. Cá de cima não vislumbro qualquer tipo de vida, como se o Piódão estivesse adormecido.
Continuo sem mais paragens até ao largo da Igreja. Depois, a pé, ando por ali numa espécie de solidão de bem-querer – desejo-a assim, que me faz bem à alma. Subo por uma rua minúscula e, na volta, o olhar perde-se no topo da serra e nos gigantes que “protegem” a aldeia…
Este momento único foi suficiente para reviver a estória do D. Quixote de la Mancha e do seu escudeiro Sancho Pança – duas personagens do imaginário fantástico de Cervantes.
Junto-lhe uma terceira, que nunca se “vê” na obra, mas sente-se a sua importância na vida apaixonada do cavaleiro: Dulcineia.
Estou, na vida, como D. Quixote de la Mancha em relação à figura que nunca viu – só dei conta disso num dia de Outono, no Piódão, aqui tão perto…

-* Publicado em novembro de 2008:

https://ritualmente.blogspot.com/2008/11/importncia-de-se-chamar-dulcineia.html#comment-form